Umas palavras a propósito do Nô Pintcha
Na ressaca de uma alegada conspiração contra o PAIGC e o povo da Guiné-Bissau, o primeiro número do Nô Pintcha, então órgão do Subcomissariado de Estado de Informação e Turismo, publicado a 27 de março de 1975, anunciava o fim do recolher obrigatório vigente nos seis dias precedentes. Talvez não tenha sido por acaso que o Nô Pintcha tenha iniciado a sua publicação com a inserção de uma tal notícia, certamente esperançosa para os guineenses. Ou, a exemplo, dos costumados enredos históricos, poderá ter sucedido que, em vista do início da publicação do jornal, se tenha julgado conveniente pôr termo ao recolher obrigatório.
Independentemente da perspetiva adotada – decorrente de diversas molduras teóricas e dos mais ou menos inventivos procedimentos metodológicos da história e de outros saberes, desejavelmente imbuídos de sentido crítico –, cumpre começar por realçar a importância política e social do Nô Pintcha, mormente para a tessitura social nos primeiros anos de independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
Com efeito, apesar de só ter iniciado a sua publicação em 1975, o Nô Pintcha foi um veículo de extrema importância para a Guiné-Bissau e, mesmo por alguns anos para cá de 1980, também para Cabo Verde. O Nô Pintcha foi muito mais do que um órgão oficioso do PAIGC, por ser sido o local de diálogo da verve ideológica com a realidade, que ele não podia deixar de traduzir.
Por isso, se convirá na sua importância política e social, certamente diversa nos dois países, desde logo, pelas respetivas diferenças, pelo diferimento temporal da sua difusão entre os cidadãos e, ainda, pelos enfoques e pelas matérias que respeitavam mais à Guiné-Bissau do que a Cabo Verde.
Na esteira da reivindicada vertente cultural imanente à insurgência revolucionária contra o colonialismo, o jornal pretendia incutir novas visões do homem e da vida e, obviamente, gerar e induzir sentimentos de empatia e respeito pela ordem política sucedânea à independência, além de adesão ao seu herói maior, indubitavelmente, ou não, Amílcar Cabral, “fundador da nacionalidade”.
A importância do jornal decorria do que nele se dizia – ou não dizia –, que comprometia leitores e não leitores. Noutros termos, o jornal valia não só pelo que nele se escrevia, como também pelo que os cidadãos inferiam acerca do que lhes era, ou não, proibido ou permitido fazer e dizer.
O Nô Pintcha denominava-se “jornal do povo”. Embora tal se referisse mais ao intento político feito em nome de um “povo”, que não deixava também de ser uma abstração, quer sob a forma de cartas, quer de entrevistas, com fotografia dos entrevistados, não deixava de ser dada voz ao “povo” sobre variadíssimas matérias. Evidentemente, nem por isso o Nô Pintcha deixava de ser o órgão de um projeto político tendencialmente monolítico e voluntarista. Porém, sem embargo dos tópicos esperados – caso do apoio a Angola e à libertação da África Austral, bem como à da unificação do Vietname e, porque não dizê-lo, da expetativa da consolidação da via socialista em Portugal – ou de lemas, que se tornariam uma constante desses dias em sociedades pautadas pelo desígnio socialista – caso da glorificação do trabalho, mote da realização humana –, pelo menos nos primórdios, o Nô Pintcha pautou-se por uma notável diversidade temática e de referências às dificuldades vividas, caso, por exemplo, da noticiada a falta de gasolina. Por esse tempo de fé na superação humana, não só enjeitava um ensaio da intentada “descolonização do pensamento”, porquanto se inclui uma nota de crítica cinematográfica do filme, A Fera Humana, de Jean Renoir, exibido em Bissau. Aliás, dias depois, lavrar-se-ia uma interpretação das taras da burguesia patentes em La Belle de Jour, de Luis Buñuel, exibido em Bissau em abril de 1975, pouco depois de se asseverar que “filmes de karaté e outras mistelas do género” não podiam continuar a “intoxicar” o “novo povo”, tal o indício de uma clivagem de classe e do paternalismo assente na ideologia e no intuito voluntarista de modelar a natureza humana.
Previsivelmente, tais exibições terão cedido o passo ao monolitismo que avassalou o devir social, adornado por anúncios voluntaristas de projetos como, por exemplo, o da “grande batalha da industrialização”. Ou por profissões de fé na redenção humana, que explicavam a pequena criminalidade, supostamente documentada com a fotografia da reconstituição de ilícitos, como um resquício da alienação colonialista.
Não se errará ao aventar-se que as matérias então abordadas indiciam da insuspeita heterogeneidade de propósitos, intenções e desejos dos atores engajados na transformação do país, para a qual se cria na validade dos ensinamentos de Amílcar Cabral, de cujas obras se publicaram excertos com regularidade.
A importância política e social do jornal nos tempos do pós-independência vem a desdobrar-se numa valia inestimável enquanto suporte de investigações históricas e sociais, desde logo, sobre a figura de Cabral e, se se quiser, sobre a (relutantemente aceite) dissonância entre os seus aventados desígnios e os rumos político-sociais. No tocante à investigação histórica, o Nô Pintcha constitui uma súmula de informações de natureza diversa, tão mais crucial quanto outras se foram perdendo, como inexoravelmente costuma suceder por variadíssimas razões.
À luz da perenidade ou da irrupção no espaço público em tempos mais recentes, assinalem-se as temáticas da cultura africana, resistência cultural, libertação nacional como ato de cultura, obviamente, tópicos de discursos simultaneamente interpretativos e panfletários que pautaram vidas e derivas políticas e sociais. Algo surpreendente para os dias de hoje, em maio de 1975 dava-se nota de que o racismo antibranco era combatido pela Frelimo. Noutros termos, são múltiplos os textos e os subtextos ínsitos no Nô Pintcha. Para além do deleite da sua descoberta e rememoração destes tópicos, cabe aos investigadores colocá-los em perspetiva para daí chegar a profícuas interpretações do devir de guineenses, cabo-verdianos, afinal, de todos nós.
E como olhar hoje para o que se escreveu sobre “justiça nova, justiça do povo”? Tal desiderato, assim como os subjacentes equívocos, não respeita só aos guineenses, nem aos cabo-verdianos, respeita a muitos de nós, ao tempo, tão generosa quanto ingenuamente apegados a crenças que, solapando a mediação, abriam caminho à corrosão das instituições e à consequente desproteção dos indivíduos. Como não dar testemunho destas andanças recorrendo ao Nô Pintcha, que, mais do que suporíamos, foi tanto um signo de realidades locais quanto de devaneios da humanidade… A terminar esta brevíssima apresentação do Nô Pintcha, baseada nos primeiros números, a conclusão, forçosamente antecipável, referir-se-á às incontáveis possibilidades de investigação sobre a Guiné-Bissau, Cabo Verde e sobre África sugeridas pela aliciante e instigante leitura do Nô Pintcha.
Augusto Nascimento
Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa
29 de setembro de 2022